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Notas sobre a Instrução Criminal

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Sinopse

ÍNDICE


Prefácio
Jorge de Figueiredo Dias

l A instrução criminal, a liberdade individual e a lealdade na produção das provas
1 O processo penal antigo
2 O processo penal inglês
3 O processo penal misto, napoleónico ou francês
A contraditoríedade na instrução escrita e a Lei Constans, de 1897
4 A polícia judiciária e a garde à vue
5 O carácter facultativo da instrução judiciária escrita nos processos penais menores e a citação directa no direito francês
6 O processo penal na Monarquia Constitucional portuguesa
7 A Intendência da Policia da Corte e do Reino no absolutismo
A detenção policial para averiguações e o Juízo de Instrução Criminal de João Franco na Monarquia Constitucional
8 De 1910 ao sidonismo (1917-1918)
9 De 1918 a 1926
10 De 1926 a 1945
11 As reformas processuais de 1945
12 O decreto dos 180 dias
13 A instrução a cargo do Ministério Público
14 As polícias instrutórias
15 As detenções das polícias instrutórias e o habeas corpus
16 Algumas estatísticas
17 As avocações de competências nas polícias instrutórias
18 O regime prisional da detenção policial
19 A instrução policial e o julgamento
20 O réu e o julgamento
21 A necessidade de se rejudicializar a instrução criminal

II A instrução preparatória policial e as garantias da defesa
1 Introdução
2 As garantias da defesa - no domínio dos textos e no dos factos
3 A necessidade das garantias da defesa na instrução escrita
4 O direito legal e o direito real

Notas

Prefácio


Reler Zenha, hoje


As Notas sobre a Instrução Criminal de Francisco Salgado Zenha constituem, a variados títulos, um pequeno-grande livro exemplar que ainda hoje, como quando em 1968 foi escrito, se revela um documento jurídico-político fundamental, cuja leitura ou releitura traz consigo esclarecimentos importantes sobre o passado e abre perspectivas ao futuro. O livro apresenta-se, por outro lado, como um retrato fidelíssimo da figura moral, política, cívica e profissional do grande português que foi Francisco Salgado Zenha. A sua reedição, acompanhada da homenagem que com ela e através dela a Universidade do Minho quis render ao seu Autor, surge deste modo como um serviço justo e inestimável prestado à Cultura, à Ciência Jurídica e à História política portuguesas.

As Notas apresentam-se, antes de tudo, como um requisitório corajoso contra um regime antidemocrático, em prol de uma mudança radical prezadora dos direitos humanos dos arguidos. Zenha denuncia nelas - e esse terá sido o propósito fundamental da publicação naquele preciso tempo - o regime de excepção, escandaloso aos olhos da Europa democrática, que continuava a valer no direito português de então para os delitos políticos: por em relação a estes a instrução judiciária pré-acusatória ter sido substituída pela competência exclusiva da polícia política para a investigação; por o poder de privar da liberdade sem qualquer controle não governamental ter sido alargado de 8 para 180 dias; por o julgamento de tais delitos ter sido atribuído a um Tribunal Militar Especial e, depois, a Tribunais Plenários; por da decisão final do Plenário caber recurso, em termos limitados, apenas para a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça.
Em tudo isto se depara com uma denúncia moral e política, fundada na situação de atroz limitação em que assim se colocavam as garantias efectivas dos acusados e a consistência da sua defesa: as provas que interessavam e podiam relevar em juízo eram obtidas pela polícia política, ao mais puro estilo inquisitório, "numa caça efectuada numa coutada reservada"; a polícia política não consentia na assistência ou sequer na simples presença do defensor aos interrogatórios a que o detido era submetido; a polícia política não reconhecia ao detido o direito de comunicar com o seu defensor. Inserindo todo este quadro negro da política criminal e do processo penal relativos à delinquência política na evolução, que a traço esquemático mas firme desenha, a partir de 1926, do processo penal português em geral - a adopção de um sistema acusatório puramente formal, a abolição do tribunal do júri, a consagração de regimes de excepção em favor das polícias, criminal e política, a administrativação da instrução a partir de 1945 - o político Zenha junta o seu protesto e empresta a sua voz à consciência pública, silenciosa que fosse, contra um regime político fautor de restrições inadmissíveis e insuportáveis dos mais elementares direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Sempre considerei como uma das facetas mais fascinantes da personalidade de Salgado Zenha o doublé de político e de advogado que nele respirava: conheci-o já bem mais na sua veste política do que na de causídico. E todavia a sua forma de argumentação, de visão dos problemas mesmo dos mais estritamente políticos, de caminhar ao encontro das soluções, transpirava por cada poro a sua formação de advogado. Como a sua conversa, chegada a hora do café e de uma bebida, revelava a sua dedicação, o seu respeito e o seu amor por aquele que fora, ao longo de toda uma vida de combate, o seu mester de defensor.
As Notas revelam à saciedade o que afirmo. Se elas terão constituído, na sua génese e no propósito da sua publicação, antes de tudo um grito de revolta política, elas surgem do mesmo passo como o plaidoyer de um advogado que se sente vítima de um tratamento injusto e inadmissível e que pretende uma vez mais dar voz a toda uma classe à qual o regime político não permite condições mínimas de trabalho em favor dos cidadãos e da justiça leal e humana que lhes era devida. É Zenha, o Advogado, quem denuncia os passos sucessivos do regime de excepção construído por oposição ao regime regra vazado no Código de Processo Penal de 1929, em prejuízo manifesto do direito de defesa do arguido: numa primeira fase, a atribuição à Polícia de Investigação Criminal de competência, paralela à dos juizes, para proceder à investigação pré-acusatória de certos delitos e para julgar certas infracções e categorias; numa segunda, a partir de 1945, a ampliação dos poderes da Polícia Judiciária por via da restrição dos poderes instrutórios do juiz e da possibilidade de a privação da liberdade atingir 180 dias sem qualquer controle judicial, bem como a atribuição de competências instrutórias ao Ministério Público, "uma agência do Governo, a ele sujeito". É ainda Zenha, o Advogado, que, tendo sempre presente no espírito - e decerto ainda mais na sua vivência diária -, a distinção entre o "direito legal e o direito real", se não coíbe de concluir: "eliminada a garantia subjectiva de a instrução ser dirigida por um juiz, e entregue esta a funcionários policiais, não incomodados por qualquer controle judiciário, todas as garantias da defesa, mesmo que escritas nas leis ou nos decretos, não entram nos seus gabinetes de inquirição. Ficam cá fora, nas ruas, nas bibliotecas, ou nos livros".

E todavia, se os méritos assinalados são em meu juízo alguns dos que fazem a grandeza do pequeno livro que aqui gostosamente me cumpre introduzir, mal andaria quem pensasse que o seu valor se esgota no de um manifesto político em favor da liberdade e da democracia. Sendo eu antes de tudo, ou mesmo só, um jurista-penalista que sempre se esforçou por se guiar pelos valores da verdade e da liberdade, comprometo-me na afirmação de que o livro de Salgado Zenha revela ainda de forma exemplar o jurista-penalista que também nele morava. O que vale por dizer que as Notas constituem uma síntese excelente e clarificadora de um dos problemas majores de todo o processo penal europeu continental, sobre o qual estamos ainda hoje longe de ter deparado com um consenso generalizado e que espera por isso novos e prospectivos desenvolvimentos.

Salgado Zenha - falámos sobre isso por duas vezes em amena cavaqueira, sentados à mesa de um restaurante lisboeta qualquer - tinha plena consciência daquilo que hoje é verdade corriqueira mas que ao jurista demorou séculos a compreender em toda a sua profundidade: que o processo penal é "direito constitucional aplicado", que, mesmo neste nosso tempo de um certo apagamento das nacionalidades, "a cada Estado pertence o seu processo penal" e que (ele o diz no seu livro) o problema jurídico-político do processo penal é, por excelência, o da estruturação da fase anterior ao julgamento. Foi este complexo problemático que Zenha, o estudioso jurista, se propôs clarificar de modo fundamental na sua investigação.

Nesta via nos dá ele conta dos contornos concretos do princípio da judicialidade do processo penal estrangeiro ao longo de vários momentos históricos, com especial destaque para os direitos francês e inglês e, em Portugal, por referência às Ordenações, ao direito processual penal da Monarquia Constitucional e da República e ao Código de Processo Penal de 1929. Para, em definitivo, escorar a sua decidida preferência pela tese da judicialização de todo o processo penal, desde o seu momento inicial e portanto com inclusão de qualquer ou quaisquer fases que antecedam o julgamento. Porque, como diz no seu estilo impressivo e fogoso, a judicialização "do processo penal, desde os pés à cabeça, desde o início ao topo, convertendo-o num verdadeiro processo judiciário, e não numa pura emanação policial toucada apenas por um julgamento judiciário no seu final, é condição sine qua non para que haja uma verdadeira justiça criminal, e não uma fachada de justiça criminal. Com a policialização ou administrativação da instrução não é só a justiça da decisão final que fica, assim, irremediavelmente comprometida, é também a própria liberdade pessoal, no seu mais amplo sentido, que fica desprovida de qualquer garantia jurídica".
Ao conhecedor da temática jurídico-processual penal não passará despercebido que, desta maneira, o Autor toca mesmo no seu cerne a questão da defesa da judicialização integral do processo penal - e portanto também do processo anterior ao julgamento - em oposição à policialização e administrativação da instrução; trazendo a debate temas que não deixam de estar presentes de forma muito viva, ainda hoje, na discussão sobre a configuração concreta da tramitação processual penal, nomeadamente o dos poderes processuais das polícias, incluída a questão da admissibilidade ou inadmissibiliade de uma investigação preliminar a cargo destas, bem como o do estatuto processual penal do Ministério Público. Tema, este último, que Zenha considera em estreita ligação com a questão mais ampla do estatuto autonômico do Ministério Público perante o poder político, recordando palavras paradigmáticas de Emygdio da Silva: "Coloque-se o Ministério Público na dependência absoluta dos governos, tirem-se-lhe todas as garantias de independência e ponderação - e (ai de nós!) a perseguição nascida de ódios políticos encontra nele um instrumento dócil e obediente, e dentro do palácio da justiça, forçando as suas portas, nós veremos na cadeira honrosa do representante da sociedade o braço vingativo da animosidade partidária guiando o gesto da acusação...".
Com esta posição, é um pedaço essencial de doutrina jurídico-processual penal e de pensamento político-criminal que Zenha reelabora, clarifica e decide. Se tomarmos a sério, como importa, a afirmação que já aqui deixei consignada e segundo a qual "outro Estado, outro processo penal", é legítimo se, nos nossos dias, Zenha teria repetido integralmente a sua proposta para um direito futuro. A razão essencial está em que, nos anos de chumbo em que escreveu, ele não podia imaginar que meia dúzia de anos mais tarde se verificaria a democratização integral da vida pública e política portuguesa; e que, com ela, se tornaria admissível e viável toda uma outra concepção do Ministério Público, como magistratura autónoma e por inteiro cindida da vontade do poder executivo e de uma ignominiosa "justiça de gabinete"; e que tal haveria por força de conduzir a uma reponderação inteiramente diferente dos dados do problema e do seu relevo para a solução.
Não que essa hipótese - tomada todavia como puramente teórica, porventura ideal - tenha passado despercebida ao espírito arguto de Zenha. "Claro - ele intui e escreve - que se pode dizer que talvez haja forma de o Ministério Público ser colocado em condições de independência perante o Governo, de modo a poder agir sempre sem espírito de perseguição política". Para logo concluir porém, desalentado: "Dificilmente o será, mas entre nós tal nunca aconteceu". E mais à frente: "O Ministério Público não é outra coisa, entre nós, senão um agente do Governo e sujeito hierarquicamente às ordens deste".
Mas justamente: foi uma acção política como a de Salgado Zenha; foi o exemplo da sua figura humana sem mácula de democrata e de advogado; foram livros luminosos como aquele aqui em consideração - foi tudo isto que permitiu que com a democratização da vida portuguesa o pessimismo de Zenha tenha podido ser desmentido e se tenha alcançado entre nós um estatuto para o Ministério Público cuja autonomia, tanto quanto conheço, não tem praticamente paralelo em parte alguma. Com o que ficam esconjurados os perigos de policialização, de administrativação e de partidarização da investigação criminal com relevo para o processo.
Quero com isto significar que a tese de Zenha da integral judicialização da investigação ficou, com este tournant, definitivamente prejudicada? De modo algum. Ela continua hoje e possivelmente continuará no futuro a ser uma tese respeitabilíssima, digna de estudo e de consideração e susceptível de estar na base de propostas de reforma no sentido de um processo penal verdadeiramente democrático. O que sucede é apenas que com o novo estatuto processual penal do Ministério Público a consideração deste (e não do juiz) como dominus do processo na fase anterior ao julgamento já não justifica o seu escarmento democrático, a conclusão inevitável pela sua insustentabilidade face a um consistente direito de defesa, a sua deslegitimação como peça de um processo autenticamente respeitador dos direitos humanos. Pelo contrário, com aquela nova concepção podem em seu favor invocar-se argumentos sólidos que, no prato da balança político-criminal e mesmo política tout court, equilibrem pelo menos as vantagens que se assacam à integral judidalização do processo penal.
Não devo ir mais longe, porque não é este o local nem o momento para uma análise estritamente jurídico-penal e político-criminal dos pontos de vista aqui contrapostos. Seja como for - ou venha a ser - quanto ao ponto por último aflorado, as Notas sobre a Instrução Criminal de Francisco Salgado Zenha constituem (e aqui vejo eu o essencial), para além de um manifesto irredutível contra a ditadura e a favor da liberdade, para além de um grito de alma de um advogado em defesa da sua nobre função, uma peça essencial da desconstrução do paradigma autoritário que por quase meio século presidiu ao processo penal português. Nas tão poucas quanto amáveis conversas que com Zenha mantive e a que já aludi, também este tema - a par de tantos outros mais leves e agradáveis - veio à nossa mesa. E recordo com saudade e emoção que em sua casa, após um delicioso "pôr do sol" que teve a gentileza e amizade de oferecer àqueles que, como eu, haviam tido a honra de pertencer à Comissão Política Nacional da sua candidatura à presidência da República, no momento da despedida, sorrindo, Zenha me disse que talvez encontrasse no futuro tempo e disposição para repensar a tese jurídico-processual e político-criminal básica das suas Notas sobre a Instrução Criminal... Ao que, recordo bem, lhe retorqui que podia certamente fazê-lo, mas não modificando o seu livro. Com isto querendo significar-lhe, sem louvaminha que ao seu espírito repugnava, que entre os inumeráveis méritos do seu estudo se conta acima de todos o de que, sendo obra irremediavelmente (e felizmente!) datada, pertence àquele pequeno número de frutos do espírito que fazem de quem os produz nossos diuturnos contemporâneos.

Coimbra, Abril de 2002
Jorge de Figueiredo Dias
Catedrático da Faculdade de Direito Universidade de Coimbra

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