Obra primeira, inaugural do transbordar de variantes na escrita dramática de Genet, As Criadas (1947) trata de um delito – cismado, sonhado, ritualizado como uma missa negra. Duas criadas irmãs congeminam o homicídio da sua patroa, entregando-se a uma espiral de jogos de representação, espaço cerimonial de um sacrifício. Em 2016, instigada pelo encenador Simão do Vale Africano, Luísa Costa Gomes traduziu pela primeira vez em Portugal a “versão Genet”, aqui publicada, que difere da chamada “versão Louis Jouvet”, o texto da primeira encenação d’As Criadas, tornado canónico nas inúmeras representações da mais representada das peças do dramaturgo francês. Conta Genet que, na altura da estreia, um crítico de teatro fez notar que as verdadeiras criadas não falam como as da sua peça. “Pretendo o contrário”, replicou. “Porque se eu fosse criada falaria como elas. Em determinadas noites. Porque as criadas só falam assim em determinadas noites.”
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Jean Genet
Jean Genet nasceu em Paris, a 19 de Dezembro de 1910. Filho ilegítimo, ainda não contava um ano de idade quando foi deixado pela jovem mãe, Camille Gabrielle Genet, num orfanato. Acolhido por uma família de artesãos, em Morvan, Genet viveu uma infância tranquila, mantendo um espírito reservado, e na escola provou-se um aluno de mérito.
Aos dez anos, foi acusado de roubo e enviado para um reformatório, de onde viria a fugir repetidas vezes ao longo dos anos seguintes, para reentrar outras tantas, sob acusações ora de furto ora de vagabundagem e, mais tarde, de homossexualidade. Escapou ao reformatório alistando-se na Legião Estrangeira, que o levou à Síria e a Marrocos, mas desertou ao fim de seis anos, para se entregar a uma vida errante, de vagabundagem, roubo e prostituição, percorrendo várias cidades europeias.
De regresso a Paris, no início dos anos 1940, mais uma vez preso por roubo, foi na prisão de Fresnes que escreveu O Condenado à Morte, ode erótica inspirada na execução de Maurice Pilorge, jovem assassino guilhotinado em 1939. Foi ainda na solidão da cela 426 que escreveu o primeiro romance, Nossa Senhora das Flores, livro onde reúne as personagens que habitam as suas fantasias, que acompanham as suas masturbações, e com quem se cruzou antes, no bas-fonds de Montmartre. Nesta obra polémica — não o foram todas as obras de Genet? —, para muitos a sua obra-prima, os heróis da história são os marginais da sociedade, os transgressores, aqui elevados à santidade. Retrato de vidas quotidianas, em Nossa Senhora das Flores, os valores são invertidos, bem como todas as formas de moralidade, e o leitor é convidado para a intimidade destas vidas carregadas de fatalidade.
Livre da prisão, Jean Genet continuou a escrever poesia e romances e chamou a atenção de Jean Cocteau, Jean-Paul Sartre, ou André Gide. Foram estas cumplicidades que o salvaram da prisão perpétua, pena que enfrentava em 1948, após mais uma acusação de roubo, desta vez por acumulação de penas. Estes escritores estão entre os diversos artistas que apelaram ao presidente da república francesa por uma amnistia, que viria a ser concedida.
No fim dos anos 1940, com um punhado de romances publicados, e outras tantas obras poéticas, Genet fez as primeiras aproximações ao drama, género onde viria a tornar-se figura de proa, sobretudo no Teatro do Absurdo. Transversal a toda a sua obra, seja qual for o género, está a solidão de Genet, as prisões, a vida errante e à margem, a que nos expõe, numa visão a um tempo poética e obscena do mundo.
Já debilitado por um cancro na garganta, Jean Genet morreu na noite de 14 para 15 de Abril de 1986, após uma forte queda no seu quarto de hotel, em Paris.
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