A Confissão da Defunta é um livro difícil de classificar. Como o apresentarias aos teus possíveis leitores?

Difícil responder a essa questão. Muito difícil. Mas creio que posso pegar nisto com a ponta de uma conversa que tive com uma amiga, também escritora. Confidenciávamos que tudo ultimamente nos aborrecia, evidentemente a ser injustas para com os livros bons ainda por descobrir, claro. Mas, este desabafo, foi também um reflexo daquilo que vem enchendo o mercado literário nos últimos tempos: tentativas sucessivas de replicar “bestsellers” instagramáveis ou então estruturas narrativas repetidas com histórias mais ou menos originais. Vi-me cansada do medo que existe em correr riscos. Escrevi A Confissão da Defunta com sede de diferença e, sobretudo, com grande vontade de espicaçar o leitor a viver.  Neste romance há alguém que morre na primeira página, uma mulher, e, morta, consegue fazer com que lhe sintamos o cheiro das axilas e do prazer. Creio que posso dizer que é um livro provocador, com uma estética literária atípica, onde sou muitas vezes rude, não peço perdão por achar o vernáculo poético, não me distingo das personagens, e não tenciono ser validada.  Tem também quatro características transversais a todos os meus livros até aqui: o desespero, a crítica social sem moralismos, o humor negro e a tragédia.

Há alguns elementos autobiográficos nas histórias e nas personagens?

As personagens e as histórias desta coleção foram inspiradas em alguns atributos físicos e qualidades, e no quotidiano infantil vivenciado pelos meus filhos e sobrinhos. Efetivamente existem uns primos que inspiraram os personagens «primos», mas as aventuras relatadas são, na sua grande maioria, pura ficção. O objetivo desta coleção é que qualquer leitor, com o mesmo nome, a mesma idade ou outra característica de um dos personagens, se possa identificar e inspirar para as suas próprias explorações e aventuras.

O que salta logo à vista na tua escrita é o facto de ser profundamente imagética. A tua experiência enquanto atriz e apresentadora tem alguma influência nisso? Consegues visualizar as cenas e as personagens dos teus livros como se estivessem num filme?

Quando escrevo nunca me imagino dentro de um filme, mas sim dentro da vida. Uma vida paralela. É como se efetivamente vivesse o que escrevo. Tem cheiro e suor e às vezes é tão real que assusta. Acho que posso dizer que comigo é ao contrário (como em quase tudo na vida), só consigo imaginar o filme depois e passado mesmo muito tempo de escrever o livro. Talvez porque gostasse de que aquela história, para mim real, passasse para a tela. Talvez porque enquanto atriz gostasse de interpretar uma das personagens. Mas aí, já é o meu ego a falar. Existiriam certamente outros atores a servir melhor as minhas personagens, até porque é muito mais fácil interpretar o umbigo dos outros.

Tal como o escritor Machado de Assis em Memórias Póstumas de Brás Cubas ou o realizador Billy Wilder em Sunset Boulevard, optas por ter um narrador — neste caso, uma narradora — já falecida. A que se deveu essa opção?

Só uma narradora morta pode falar com tamanha liberdade. Afinal, que mais pode acontecer a um morto além de morrer?

O que surgiu primeiro: a trama, o fim ou a personagem Regina? E como é que se foi desenrolando na tua cabeça?

Eu costumo dizer que o meu processo de escrita é o não processo. No momento em que eu souber o fim de um livro meu, sei que perderei o tesão por escrever. E isto sou muito eu na minha vida. Não acredito em videntes porque não quero que descubram o meu fim. Iam acabar comigo. Por isso vou, nessa insanidade que é ter todas as possibilidades do mundo e não saber o que fazer com elas. Demoro-me mais, evidentemente, mas tem valido a pena.

O livro transita entre a Terra e o Purgatório. O paraíso é um vislumbre muito distante. Regina é uma personagem desencantada? O Purgatório e o Inferno são mais apetecíveis do ponto de vista literário?

O Paraíso está resolvido e deve ser aborrecido. Para mim é uma história acabada. Eu quero a outra. A desvairada e sem travões, onde os humanos se esbarram todos.

Estamos na época do Natal. Tradicionalmente, esta é a altura em que se compram mais livros.  Que livros vais oferecer e quais esperas poder receber por esta altura?

Eu espero receber livros e meias de lã (sei que a minha mãe já me fez umas). Não quero mais nada. Nem quero que me perguntem o que quero ler. É a única altura em que gosto de surpresas, e depois o livro que alguém nos oferece diz mais da outra pessoa do que de nós, e eu gosto muito de descobrir pessoas. Naturalmente, não vou dizer que livros vou oferecer. Também quero fazer surpresa. Mas vou sugerir alguns que li e que devem habitar cabeças e casas para sempre. Aqui Vai: Vaim (Jon Fosse) — quem se lembra de começar uma história à procura de comprar uma agulha e um carrinho de linhas? —, Fazes-Me Falta (Inês Pedrosa) — um romance com um mecanismo narrativo genial —, Poeta para Governo da Cidade (Maria Antónia Bastos) — poesia que vai às vísceras e deita sangue —, e, por último, Alexis ou Tratado do Vão Combate (Marguerite Yourcenar) — uma confissão em tempos interdita, que nos toca para sempre.

Desconto: 10%
14,31 € 15,90 €
Wishlist Icon